29 de abril de 2012

O (G)ato

Lânguido no seu travesseiro de lascas felpudas, namora o Sol que o embebeda com a luz de seus beijos gentis. Procurando a brisa em tela azul, vê a sua imagem espelhada numa pena negra que voa em seu redor. Os seus olhos cercam-na e acaba por pousar na ponta do nariz. Espirra. E a pena foge para os ramos da velha árvore... Era tão alta que no seu cimo adormeciam anjos caídos, exaustos pela paz celestial que ecoava pelos céus.
A pena subia cada vez mais alto e um desses anjos apanha-a e começa a molestá-la, fazendo-a passar pelo seu pescoço delicado. Enfurecido e magoado pela ousadia, voa até ao seu poiso, chorando lágrimas frias e pesadas. Tira-lhe a pena das mãos e arranca as suas asas brancas num ímpeto de inveja e ciúme. O anjo canta em agonia e os seus semelhantes observam-no em pecado. Os seus olhos espumavam fogo e não satisfeito, debica o anjo cantor, com um brutal requinte, engolindo-o depois de uma só vez. É então que acontece aquilo que todos aguardavam desesperadamente, fartos de toda a solene carnificina que o banquete figurava. Regressa ao seu ninho e embalado pelo Sol, seu amante, banha-se com uma lentidão excêntrica e atrevida, abraçado à pena que era sua.

25 de abril de 2012

Fuga

Já demasiado presa ao ruído dos seus passos, aprisiona-se no próprio corpo, mudo, esquivando-se à sombra que vem agarrada ao pó dos seus pés. Oculta-se no espaço, dando lugar ao vazio que lhe enche os sentidos, torpes pela azia que trás o exagero de nada.
Soam dúzias de cães raivosos e ela muda, faz-se de surda. Entrega-se à dança desses espectros manhosos que a prendem ao solo escaldante, enterrando-a nos buracos por eles abertos. Solta-se a pele e a carne, e assim desaparece, fustigada pelo entorpecimento de um qualquer caos efémero.

19 de abril de 2012

Bichos

Deitas-te sobre a noite com o seu mudo sussurro, despedaçado por cada réstia de esperança empregue nos teus passos resfriados. Danças abraçado à sombra, seduzido pelo amargo que te acaricia a pele e te despe do ardor das palavras. Escorre-te dos olhos ressequidos o sentido, consumindo as vestes que te cobriam o corpo enrugado.Preso no reflexo da miséria projectada no teu rosto desfeito, corrói-te o ácido nas veias desse olhar que nunca chegou, nunca foi dito. Colhes as pernas, nada te resta, arrancas os lábios insolentes. Insolentes.Rastejando pelos corpos, azedados pela doçura da seda do seu azul putrificado, procura aquele que lhe queimou o peito com o veneno da sua voz delicada. Ao beijar os seus lábios enevoados desfaz-se em cinza, esvoaçando pelo ar do sufoco do seu sorriso esverdeado.